sábado, 8 de novembro de 2014

Orientalismo: O Oriente Co­mo Invenção do Ocidente - Edward W. Said

Edição 1922 de 6 a 12 de maio de 2012
Livro
Oriente, a invenção rebelde
Em “Orientalismo — O Oriente Como Invenção do Ocidente”, a diversidade do tema não convence Edward W. Said de que o orientalismo é um tema rebelde a qualquer esforço reducionista. Para Said, toda a multiplicidade das manifestações orientalistas volta-se contra o próprio orientalismo, servindo apenas para confirmar o tom reacionário imputado ao tema ao longo de todo o livro
The Guardian
Edward W. Said
Nei Duclós
Especial para o Jornal Opção
Um bom livro vale tanto pelas perguntas que provoca quanto por suas revelações. No caso de “Orientalismo — O Oriente Co­mo Invenção do Ocidente”, de Edward W. Said, da Universidade de Stanford, da Califórnia, esse duplo benefício se impõe, primeiro, por ser uma tese bem fundamentada de um fenômeno cultural atualíssimo, especialmente no cinema, na televisão, no noticiário e na visão distorcida que costumamos fazer do Outro. Podemos assim sistematizar nossa posição crítica em relação ao orientalismo que, segundo o autor, foi uma invenção europeia para conquistar e dominar terras e povos situados numa vasta região geográfica da Ásia e da África e que mantém-se até hoje, imutável na sua essência, servindo especialmente como instrumento da política imperialista norte-americana.

Entre as inúmeras definições de Said para seu objeto de estudo, o orientalismo é descrito como uma rede de interesses, um estilo de pensamento e uma instituição organizada para negociar, dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente. É também um corpo criado de teoria e prática, uma obra humana induzida e uma distribuição de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos.

Said adverte que ideias, culturas e histórias não podem ser estudadas sem que a sua força, ou mais precisamente, sua configuração de poder seja também estudada. Por isso, procura mostrar que a cultura europeia ganhou em força e identidade comparando-se com o Oriente como uma espécie de identidade substituta e até mesmo subterrânea, clandestina. Sua intenção, ao ilustrar, analisar e refletir sobre o orientalismo como um exercício de força cultural, é promover o estudo das alternativas contemporâneas ao tema. Quer, assim, contribuir com uma perspectiva libertária – segundo sua própria expressão — na investigação de outras culturas e outros povos.

Ele entende que o “orientalismo acomodou-se com êxito ao novo imperialismo” e propõe um novo enfoque para evitar os perigos e tentações de se empregar esse tipo de estrutura cultural sobre si mesmo e sobre os outros. A perspectiva libertária de Said é bastante ampla, extensiva a todos os estudiosos sérios, pois ele encara como uma limitação a ideia de que apenas os muçulmanos podem escrever sobre muçulmanos, ou negros sobre negros e assim por diante. Sua proposta é descolonizar totalmente os estudos da área para evitar que o orientalismo seja mais uma das “algemas forjadas pela mente”.

A consistência do seu enfoque não elimina, entretanto, algumas dúvidas que se manifestam como o segundo benefício do livro, pois a partir desta pesquisa, somos obrigados a colocar em xeque o maior número de aspectos possíveis sobre o assunto. A primeira delas é sobre a resistência granítica do paradigma (ou “consenso de pesquisa acadêmica”, conceito emprestado de Thomas Kuhn) transformado em dogma. Por dois séculos o orientalismo manteve-se idêntico, sem mudar de natureza? Ou seja, a especialidade da época de Napoleão conserva-se no tempo até chegar aos nossos dias para servir de arma ideológica no Oriente Médio? Essa dúvida persiste, mesmo levando-se em consideração todas as transformações apontadas por Said, de que o orientalismo nasce a partir dos antiquários, cresce no século 19 junto com a expansão europeia, especializa-se na função de artigo de uso na virada para o século 20 e torna-se moeda de capital simbólico fundamental para a política externa dos Estados Unidos depois da Segunda Guerra.

A impressão que se tem — e isso precisaria de um estudo mais detalhado — é que Said partiu da situação de hoje — onde o orientalista participa da guerra ideológica contra os árabes — e projeta sua crítica até o século 18, numa viagem anacrônica apresentada no livro pelo avesso — ou melhor, de trás para diante. Um dos embasamentos para esta observação é a maneira unilateral (sempre negativa) como Said se refere a uma das forças culturais que impulsionaram o orientalismo no início, ou seja, o Romantismo.

Como nota Gerd Bornheim, os românticos “valorizaram também a Ásia e sobretudo a Índia, dando início a uma atitude não apenas exterior, mas voltada, respeitosamente (grifo meu), para a cultura e para a religião dos países asiáticos. Isso é tão importante que podemos dizer que, desde o Romantismo, a Europa já não é apenas a Europa, a ponto de Paul Valéry poder perguntar se ela não seria tão-somente um cabo da Ásia”. A procura do Outro, o entranhamento nas terras ignotas, a busca de conhecimentos anteriores ao cristianismo, o estudo de línguas mortas, todas as preocupações, enfim, dos românticos que influenciaram o nascimento do orientalismo e acabaram relativizando a própria noção de Europa, são excessivamente reduzidas ao impulso político, aos interesses comerciais, à barbárie imperialista.

Isso é verificado quando o autor reconhece que o orientalismo era uma erudição, apesar de ser um equívoco. A dúvida é: por que, neste livro, a erudição é todo o tempo subestimada em favor dos erros? Não estaria, neste caso, o orientalismo sendo submetido a uma camisa de força? Será que este livro é capaz de conter toda a diversidade (não no sentido de extensão, mas no de significados múltiplos e muitas vezes contrários) do orientalismo? É claro que Said adverte sobre esse problema metodológico no primeiro capítulo, mas será que ele não estaria delimitando o campo de estudo à custa da mutilação do tema?

Um exemplo dessa limitação é o papel atribuído por Said aos orientalistas que atuaram no período próximo à Primeira Guerra Mundial. Bastaria dizer que o individualismo impunha uma visão diferenciada dos estudiosos dessa época? Ou seria preciso colocar a contradição ética de T. E. Lawrence, por exemplo, que é a espinha dorsal do roteiro de Richard Bolt para a obra-prima de David Lean (“Lawrence of Arabia”, 1967), baseado nos “Sete Pilares de Sabedoria”?

Acusar este texto de Lawrence — admirado pelo pragmático Churchill — de ser “patentemente ficcional” não elide o problema focal, que é a divisão interna do orientalista, puxado de um lado pelo mundo que escolheu e por outro pelo mundo ao qual pertence. Pode-se argumentar que, ao fim e ao cabo, o filme de Lean obedece aos parâmetros apontados por Said (personagens árabes importantes, como o príncipe Feisal, são representados por atores ocidentais) e que Lawrence realmente serviu ao imperialismo anglo-americano na briga contra os turcos e na manipulação dos árabes. Mas isso só seria válido se Said pudesse provar que a contribuição da Revolta Árabe — onde Lawrence foi uma figura central — para os futuros movimentos nacionalistas no Oriente Médio foi absolutamente nula.

Outra dúvida importante é sobre o conceito de Oriente real que aparece de surpresa no livro — compactuando com a visão pré-concebida do leitor — e que, ao longo da exposição, como numa dança dos sete véus, revela-se uma ilusão, uma representação. Ele usa as expressões “Oriente real, realidade moderna do Oriente, o Oriente vivo, contemporâneo, o Oriente tal qual ele é” e conclui que “não é tese deste livro sugerir que existe algo como um Oriente real ou verdadeiro”. É como prometer a virgem e não entregá-la ao noivo na hora das bodas. A dúvida é a seguinte: por que Said não assume todas as implicações da análise do discurso logo no início do livro? Ao basear a tese na pesquisa do discurso orientalista, não seria fundamental voltar-se metodologicamente para esse enfoque, abraçando todo o aparato teórico decorrente dessa opção? Por que Said prefere envolver o leitor com uma análise do discurso fundada no paradigma marxista — já que é o poder, a política e o comércio que definem a delimitação do campo? Com um pé em Ranke — já que ele cuida, no fundo, do orientalismo como um vetor da história do Estado —, outro em Marx — onde a força cultural, a superestrutura, é condicionada pelas forças econômicas e políticas do imperialismo, a infraestrutura — Said invoca Hayden White de leve, como se temesse ser confundido com os modismos que carregaram o debate da historiografia nos anos 1960, mais tarde denunciada por Pierre Bourdieu.

Se essas observações forem corretas, o autor estaria projetando no seu livro o crime que detecta no seu objeto de estudo. Pois o orientalismo denunciado por Said fica parecido com o árabe dos orientalistas — eterno e imutável. A diversidade do tema não convence Said de que o orientalismo é um tema rebelde a qualquer esforço reducionista. Ao contrário: para Said, toda a multiplicidade das manifestações orientalistas volta-se contra o próprio orientalismo, servindo apenas para confirmar o tom reacionário imputado ao tema ao longo de todo o livro. Talvez seja essa projeção — o estigma do assunto contaminando a análise crítica — a grande dificuldade no estudo das ciências humanas, um perigo tão real quanto o anacronismo. O historiador e o cientista social se envolvem tanto com o cam­po delimitado que acabam ocupando nele uma posição incômoda.

Essa ameaça assemelha-se à síndrome de aprendiz de feiticeiro. É como se o autor fosse levado, como Lawrence, de roldão pelas forças que desencadeia.
Nei Duclós é escritor e jornalista.

Leia um trecho de “Orientalismo — O Oriente como Invenção do Ocidente”
Numa visita a Beirute durante a terrível guerra civil de 1975-6, um jornalista francês escreveu com pesar sobre a área deserta no centro da cidade que “ela outrora parecia pertencer [...] ao Oriente de Chateaubriand e Nerval”. Ele tinha razão sobre o lugar, é claro, e especialmente no que dizia respeito a um europeu. O Oriente era praticamente uma invenção europeia e fora desde a Antiguidade um lugar de episódios romanescos, seres exóticos, lembranças e paisagens encantadas, experiências extraordinárias. Agora estava desaparecendo; num certo sentido, já desaparecera, seu tempo havia passado. Talvez parecesse irrelevante que os próprios orientais tivessem alguma coisa em jogo nesse processo, que mesmo no tempo de Cha­te­au­briand e Nerval os orientais tivessem vivido ali, e que agora fossem eles que estavam sofrendo; o principal para o visitante europeu era uma certa representação europeia - compartilhada pelo jornalista e por seus leitores franceses — a respeito do Oriente e de seu destino atual.

Os americanos não sentirão exatamente o mesmo sobre o Oriente, que mais provavelmente associarão ao Extremo Oriente (principalmente à China e ao Japão). Ao contrário dos americanos, os franceses e os britânicos - e em menor medida os alemães, os russos, os espanhóis, os portugueses, os italianos e os suíços - tiveram uma longa tradição do que vou chamar “Orientalismo”, um modo de abordar o Oriente que tem como fundamento o lugar especial do Oriente na experiência ocidental europeia. O Oriente não é apenas adjacente à Europa; é também o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias europeias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival cultural e uma de suas imagens mais profundas e mais recorrentes do Outro. Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes. Mas nada nesse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia. O Orientalismo expressa e representa essa parte em termos culturais e mesmo ideológicos, num modo de discurso baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens, doutrinas, burocracias e estilos coloniais. Em contraste, a compreensão americana do Oriente parecerá consideravelmente menos densa, embora nossas recentes aventuras no Japão, na Coréia e na Indochina devam estar criando uma consciência “oriental” mais sóbria, mais realista. Além disso, a enorme expansão do papel político e econômico da América no Oriente Próximo (o Oriente Médio) exige com urgência nossa compreensão desse Oriente.

Ficará claro para o leitor (e tornar-se-á ainda mais claro nas muitas páginas que se seguem) que por Orientalismo quero dizer várias coisas, todas, na minha opinião, interdependentes. A designação mais prontamente aceita para Orientalismo é acadêmica, e certamente o rótulo ainda tem serventia em várias instituições acadêmicas. Quem ensina, escreve ou pesquisa sobre o Oriente — seja um antropólogo, um sociólogo, um historiador ou um filólogo — nos seus aspectos específicos ou gerais é um orientalista, e o que ele ou ela faz é Orientalismo. Comparado a “estudos orientais” ou “estudos de área”, é verdade que o termo Orientalismo deixou de ser o preferido dos especialistas atuais, não só porque é demasiado vago e geral, como porque conota a atitude arrogante do colonialismo europeu do século XIX e do início do século XX. Ainda assim escrevem-se livros e realizam-se congressos que têm o “Oriente” como foco principal, e o orientalista, à nova ou velha maneira, como autoridade principal. O ponto é que, ainda que não sobreviva como antigamente, o Orientalismo continua a viver na academia por meio de suas doutrinas e teses sobre o Oriente e o oriental.

Relacionado a essa tradição acadêmica, cujos caminhos, transmigrações, especializações e transmissões são em parte o tema deste estudo, há um significado mais geral para o Orientalismo. O Ori­en­talismo é um estilo de pensamento baseado numa distinção ontológica e epistemológica feita entre o “Oriente” e (na maior parte do tempo) o “Ocidente”. Assim, um grande número de escritores, entre os quais poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais, tem aceitado a distinção básica entre o Leste e o Oeste como ponto de partida para teorias elaboradas, epopeias, romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente, seus povos, costumes, “mentalidade”, destino e assim por diante. Esse Orien­talismo pode acomodar Ésquilo, digamos, e Victor Hugo, Dante e Karl Marx. Um pouco mais além nesta introdução, vou tratar dos problemas metodológicos encontrados num “campo” tão amplamente trabalhado como este.

O intercâmbio entre o significado acadêmico e o sentido mais ou menos imaginativo de Orien­talismo é constante, e desde o final do século XVIII há um movimento considerável, totalmente disciplinado — talvez até regulado — entre os dois. Neste ponto chego ao terceiro significado de Orientalismo, cuja definição é mais histórica e material que a dos outros dois. Tomando o final do século XVIII como ponto de partida aproximado, o Orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição autorizada a lidar com o Oriente - fazendo e corroborando afirmações a seu respeito, descrevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o: em suma, o Orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente. Achei útil neste ponto empregar a noção de discurso de Michel Foucault, assim como é descrita por ele em “Arqueologia do saber” e em “Vigiar e punir”. Minha argumentação é que, sem examinar o Orientalismo como um discurso, não se pode compreender a disciplina extremamente sistemática por meio da qual a cultura europeia foi capaz de manejar - e até produzir - o Oriente política, sociológica, militar, ideológica, científica e imaginativamente durante o período do pós-Ilu­minismo. Além disso, o Orien­talismo tinha uma posição de tal força que ninguém escrevendo, pensando ou agindo sobre o Oriente poderia fazê-lo sem levar em consideração as limitações ao pensamento e à ação impostas por ele. Em suma, por causa do Orientalismo, o Oriente não era (e não é) um tema livre para o pensamento e a ação. Isso não quer dizer que o Orientalismo determina unilateralmente o que pode ser dito sobre o Oriente, mas que consiste numa rede de interesses inevitavelmente aplicados (e assim sempre envolvidos) em toda e qualquer ocasião em que essa entidade peculiar, o “Oriente”, é discutida. Este livro tenta mostrar de que maneira isso acontece. Ele também tenta mostrar que a cultura europeia ganhou força e identidade ao se contrastar com o Oriente, visto como uma espécie de eu substituto e até subterrâneo.

Histórica e culturalmente, há uma diferença quantitativa bem como qualitativa entre o envolvimento franco-britânico no Oriente e — até o período do domínio americano depois da Segunda Guerra Mundial — o envolvimento de qualquer outra potência europeia e atlântica. Falar do Orientalismo, portanto, é falar principalmente, embora não exclusivamente, de um empreendimento cultural britânico e francês, um projeto cujas dimensões incluem áreas tão díspares como a própria imaginação, toda a Índia e o Levante, os textos bíblicos e as terras bíblicas, o comércio de especiarias, os exércitos coloniais e uma longa tradição de administradores, um formidável corpo de eruditos, inúmeros “especialistas” e “auxiliares” orientais, um professorado oriental, um arranjo complexo de ideias “orientais” (o despotismo oriental, o esplendor oriental, a crueldade, a sensualidade), muitas seitas, filosofias e sabedorias orientais domesticadas para o uso europeu local — a lista pode se estender mais ou menos indefinidamente. A minha ideia é que o Orientalismo deriva de uma intimidade particular experimentada entre a Grã-Bretanha, a França e o Oriente, que até o início do século XIX significava apenas a Índia e as terras bíblicas. Do começo do século XIX até o fim da Segunda Guerra Mundial, a França e a Grã-Bretanha dominaram o Oriente e o Orien­talismo; desde a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos dominam o Oriente, abordando-o como a França e a Grã-Bre­tanha outrora o fizeram. Dessa intimidade, cuja dinâmica é muito produtiva, mesmo que sempre demonstre a força relativamente maior do Ocidente (britânico, francês ou americano), provém o grande corpo de textos que chamo de orientalistas.

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